Caso não tivesse nos deixado em dezembro de 1996, aos 62 anos, vítima de um derrame cerebral, o cantor, compositor e instrumentista maranhense João do Vale completaria 89 anos no dia 11 de outubro.

E, para homenagear o aniversariante do dia e seguir homenageando grandes compositores da nossa música popular brasileira – que são tão importantes e têm uma contribuição tão significativa quanto cantores, intérpretes e músicos – nós damos continuidade à série Saudando Grandes Compositores da MPB, em que contamos a história de grandes clássicos das carreiras desses artistas.

Foto: Reprodução

João do Vale

João do Vale nasceu em 11 de outubro de 1934, na cidade de Pedreiras, no Maranhão. Quinto de oito irmãos, dos quais apenas três sobreviveram à infância pobre, João sempre gostou muito de música e, por volta dos seis anos de idade, foi apelidado de “Pé de Xote”, pois vivia pulando e dançando. 

Ainda menino, chegou a perder a vaga no Grupo Escolar em que estudava para dar lugar ao filho de um coletor de impostos. Auxiliava nas despesas da casa, vendendo balas, doces e bolos que a mãe fazia.

Com 12 anos, mudou-se com a família para São Luís, onde trabalhou vendendo laranjas nas ruas. Nesse período participou do Noite Linda, um grupo de bumba-meu-boi, como fazedor de versos.

Com 15 anos, João do Vale fugiu de casa, indo de trem para Teresina, onde conseguiu emprego como ajudante de caminhão. Fazia viagens entre Fortaleza e Teresina.

Um dia viajou até Salvador e resolveu ficar por lá, por estar mais perto do Rio de Janeiro, para onde pretendia ir. Mais tarde, foi para Minas Gerais, onde trabalhou como garimpeiro na cidade de Teófilo Otoni, e  obteve dinheiro para a sonhada viagem à então capital da República. 

Foi para o Rio de Janeiro de carona em caminhão e arranjou emprego de pedreiro em Copacabana, em uma obra na Rua Barão de Ipanema. João trabalhava e dormia na obra, visitando periodicamente as rádios, principalmente a Rádio Nacional, à procura de artistas que quisessem gravar as suas composições, em sua maioria, baiões.

Mostrava suas músicas a muitos artistas, inclusive à cantora Marlene e a Tom Jobim, que naquela época tocava piano em uma boate de Copacabana.

O início da carreira

Depois de dois meses de tentativas, João do Vale teve uma música de sua autoria gravada pela primeira vez em disco: a canção Madalena, em parceria com Zé Gonzaga, foi gravada por Zé e fez bastante sucesso no Nordeste.

Em 1953, Marlene – que tornou-se uma de suas maiores intérpretes – lançou outra composição de JoãoEstrela Miúda, em parceria com Luiz Vieira, que também teve êxito. 

Como o dinheiro recebido pelas primeiras gravações chegava a 200 mil-réis contra os 5 mil-réis que ganhava como pedreiro, João abandonou a construção civil e resolveu dedicar-se à carreira artística. 

A partir daí, passou a ter várias de suas composições gravadas por diversos nomes da nossa música, como:

  • Jackson do Pandeiro (que gravou o super sucesso O Canto da Ema, parceria de João do Vale com Alventino Cavalcanti e Aires Viana, em 1956);
  • Dolores Duran (que gravou Na Asa do Vento, parceria com Luiz Vieira, também em 1956);
  • Ivon Curi gravou o super sucesso Pisa na Fulô (xote de parceria com Silveira Júnior Ernesto Pires, em 1957);
  • Luiz Gonzaga (De Teresina a São Luiz, 1962).

Em 1954, João do Vale participou – como figurante – do filme Mãos Sangrentas, dirigido por Carlos Hugo Christensen, onde conheceu Roberto Farias, na época assistente de direção, que – ao se transformar em diretor – convidou o compositor para musicar alguns de seus filmes, como No Mundo da Lua, de 1958. 

Em 1964, o maranhense estreou, como cantor, no restaurante Zicartola – importante ponto de encontro de músicos da época, que tinha como donos o sambista Cartola e sua esposa Dona Zica.

Show Opinião

Foi lá que nasceu a ideia do antológico Show Opinião, de Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa, com direção de Augusto Boal. Em cena:

  • João do Vale (representando o povo nordestino);
  • Zé Keti (representando o samba do morro carioca);
  • Maria Bethânia (que substituiu Nara Leão, depois da cantora ter um problema nas cordas vocais). Nara representava a classe média do Rio de Janeiro, enquanto Bethânia passou a representar uma retirante nordestina.

No espetáculo de protesto – apresentado entre os anos de 1964 e 1966, no Teatro de Arena, em São Paulo, no auge da Ditadura Militar no Brasil – os atores-cantores intercalavam canções a narrações referentes à problemática social do país.

A canção mais impactante e famosa do espetáculo (que depois virou álbum) tornou João do Vale conhecido no Brasil inteiro: Carcará, parceria com José Cândido, sobre a qual vamos contar a história em breve.

O primeiro disco de João do Vale

Em 1965, João do Vale gravou o seu primeiro disco: Poeta do Povo – apelido pelo qual ficou conhecido – com 12 composições de sua autoria pela primeira vez registradas em sua voz, incluindo – além de canções aqui já citadas – o baião Minha História, uma autobiografia, e o sucesso A Voz do Povo, parceria com Luiz Vieira.

Em 1969, o artista maranhense compôs a trilha sonora do filme Meu Nome é Lampião de Mozael Silveira. Em 1970, Tim Maia gravou – em seu LP de estreia, a canção Coroné Antônio Bento, parceria de João com Luiz Vanderley – sobre a qual também vamos contar a história ainda nesta matéria especial.

Em 1974, Gilberto Gil gravou com sucesso, no álbum Expresso 2222, a música O Canto da Ema. Em 1975, João participou de nova montagem do show Opinião, ao lado de Zé Kéti Marilia Medalha, com direção de Bibi Ferreira

Mestre em Cultura Popular

No mesmo ano, foi aos Estados Unidos, a convite da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, para falar a professores de Português a respeito das expressões sertanejas que usava em suas músicas.

Fez tanto sucesso, que foi convidado a voltar, sendo apontado como referencial de literatura e arte popular brasileiras e recebendo da Universidade norte-americana o título de Mestre em Cultura Popular

Em 1981, João do Vale lançou seu segundo disco, ao lado de Chico Buarque, que – no ano anterior – havia produzido o LP João do Vale Convida, com participações de Nara Leão, Tom Jobim, Gonzaguinha e Zé Ramalho, entre outros. 

No final dos anos 1980, o artista sofreu um derrame cerebral, que deixou sequelas – entre 1987 e 1990 – precisando ficar em uma cadeira de rodas, e com capacidade de comunicação também reduzida.

Em 1995, um ano antes de João do Vale nos deixar, Chico Buarque voltou a reverenciar o amigo, reunindo artistas para gravar o disco João Batista do Vale, vencendo o Prêmio Sharp de Melhor Disco Regional, com participação de:

  • Edu Lobo;
  • Maria Bethânia;
  • Paulinho da Viola;
  • Alceu Valença

Em 1995, foi fundado o Teatro João do Vale, no Centro Histórico de São Luís, e – em 2006 – 10 anos após sua morte, foi lançado o espetáculo musical João do Vale – o Poeta do Povo, peça de Maria Helena Künner, com direção musical de Marco Aurêh, baseada na biografia Pisa na fulô, mas não maltrata o Carcará, escrita por Márcio Paschoal. 

Na sua terra natal, em Pedreiras, João é homenageado com uma estátua sua, onde o braço e o carcará que ele segura são feitos de bronze.

Saudando Grandes Compositores da MPB

Como prometido, para celebrar a existência de João do Vale, hoje nós contaremos a história de dois dos seis maiores clássicos: Carcará e Coroné Antônio Bento.

A história da música “Carcará” (1965), de João do Vale e José Cândido

Carcará é uma ave de rapina que sobrevive às mais duras condições, conseguindo se alimentar até mesmo em regiões de seca e aridez:

“Carcará quando vê roça queimada
Sai voando, cantando, carcará
Vai fazer sua caçada (carcará)
Carcará come inté cobra queimada

Quando chega o tempo da invernada
No sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada”

A canção de João do Vale e José Cândido – apresentada no espetáculo de protesto Opinião, em 1965, no auge da ditadura militar no Brasil – denunciava toda a desigualdade e todo o desprezo e descaso sofrido pelos nordestinos, que morriam ou eram expulsos de suas terras por conta da seca, castigados pela fome.

A canção repudia a opressão de um regime perante as dificuldades de seu povo.

No meio da letra – brilhantemente interpretada por Maria Bethânia, que, com sua visceralidade, ganhou neste momento (aos 18 anos!) a alcunha de cantora de protesto – inclui a recitação de um texto retirado de um relatório da Sudene – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste:

“Em 1950, mais de 2 milhões de nordestinos viviam fora dos seus estados natais. 10% da população do Ceará emigrou. 13% do Piauí. 15% da Bahia. 17% de Alagoas.”.

O trecho é seguido pelo fim da letra escrita por João do Vale:

(Carcará) pega, mata e come

Carcará num vai morrer de fome

Carcará, mais coragem do que homem

Carcará pega, mata e come!

Na versão da canção interpretada mais tarde, em 1982, por João do Vale e Chico Buarque, o protesto fica mais claro. Eles incluem a frase:

“Enquanto isso, um colar com com 40 pérolas de águas marinhas brasileiras era dado à Rainha Elizabeth”.

A história da música “Coroné Antônio Bento” (1970), de João do Vale e Luiz Wanderley

Em seu LP de estreia – homônimo, de 1970 – o cantor e compositor carioca Tim Maia incluiu uma canção de João do Vale em parceria com o alagoano Luiz Wanderley, chamada Coroné Antônio Bento.

A música, excelente mistura de rock com baião, é na verdade uma releitura do baião Matuto Transviado, grande sucesso da dupla, que já havia sido gravada por Luiz Wanderley, em 1959.

Na canção, os autores contam a história do Coronel Antonio Bento, que – no dia  do casamento de sua filha Juliana com Zé Macaxeira, que acontecia em Bodocó, cidade pernambucana – dispensou os sanfoneiros e convidou Bené Nunes para tocar.

O carioca Bené Nunes foi um dos maiores pianistas dos anos 50 e o pianista favorito do presidente Juscelino Kubitschek, tendo chegado a animar bailes no Palácio do Catete

Na casa de Bené Nunes na Gávea, Rio de Janeiro, aconteciam encontros de músicos parecidos com os que aconteciam no apartamento de Nara Leão em Copacabana e que, depois, culminaram no movimento que passamos a chamar de Bossa Nova. 

A cidade pernambucana Bodocó foi a loucura com um pianista carioca tocando no lugar dos típicos sanfoneiros de lá!

​​Gostou de saber mais sobre as histórias de grandes canções da nossa música popular brasileira? Continue acompanhando a nossa série Saudando Grandes Compositores da MPB. Hoje, homenageamos o aniversariante João do Vale.

Por: Lívia Nolla

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